Banda desenhada ou
a cultura como divertimento

Carlos Gonçalves (coleccionador)


Cerca de 50.000 revistas, 3.000 livros e 2.000 suplementos de banda desenhada fazem a colecção de histórias aos quadradinhos de Carlos Gonçalves ser merecedora de nota. Adepto desde criança desta literatura, o coleccionador contou ao Correio da Linha algumas histórias de uma vida dedicada a uma paixão feita de desenhos, balões de diálogos e imagens coloridas.
Um percurso que obriga à visita de alfarrabistas, à passagem pelo Clube Português de Banda Desenhada e à mudança de casa!


O interesse de Carlos Gonçalves pela banda desenhada vem de há décadas atrás, quando, ainda muito novo, já sabia que a sua leitura preferida eram as histórias aos quadradinhos. Uma paixão que, no entanto, não colocava de lado outras leituras mais sérias, como as obras de Emile Zola, que leu na íntegra ainda aluno da escola primária. Nesses tempos e na impossibilidade de adquirir livros, Carlos Gonçalves valeu-se de um vizinho que Ihe emprestou varios números de "O Mosquito", mas aos 11 anos, logo que se empregou, começou a investir na compra de revistas. Um vício semanal que versava não só revistas portuguesas, mas também brasileiras. Um pouco de tudo o que ía encontrando em segunda-mão, a 10 tostões (€ 0,005), ou novo, por quatro (€ 0,02) ou cinco escudos (€ 0,025).

Até ir para a tropa, Carlos Gonçalves coleccionou inúmeras revistas que, em tempos difíceis, acabaram por ir parar às mãos de outros interessados no assunto dos quadradinhos. A decisão de vender as histórias não foi fácil, mas parecia-lhe a única solucao. "A tropa pagava um pré que não tinha dó de quem morava em Lisboa e tinha que vir de Tavira, sempre que podia, ao fim de semana", explica. Apesar de nos intervalos do curso, o coleccionador trabalhar, "as dificuldades aumentaram. Houve necessidade de vender e de arranjar dinheiro". E, algumas das suas raridades pouco a pouco, foram desaparecendo das prateleiras ''as revistas que foram ciosamente guardadas durante anos". Só escapou a colecção de "O Cavaleiro Andante", a única que ainda possui desse tempo. Não obstante, algumas das revistas que vendeu, conseguiu mais tarde recuperar. De outras ainda hoje não sabe o paradeiro.

Quando foi para Angola, Carlos Gonçalves podia despender, finalmente, de parte do seu vencimento na colecção. Foi então possível, "deixar a familia bem em Lisboa e mandar vir do Brasil todo o tipo de revistas" que passaria a coleccionar, a par das portuguesas.

O regresso ao nosso país e um novo emprego, pernitiram-lhe também meter-se noutras aquisições. Desta feita começou a comprar revistas antigas, incluindo "O Mosquito". E pouco tempo depois, as revistas foram-se acumulando...

A falta de espaço

"Desde muito novo sempre gostei de coleccionar coisas. Comecei com os selos, com as caixas de fósforos e com os postais, colecções que acabaria por interromper, por falta de espaço. A própria banda desenhada começava tambem a dar-me problemas. A minha mulher queria ir à janela e não podia, pois no vão da janela encontravam-se centenas de publicações. Acabei por ter de arranjar outra casa, fora de Lisboa, para onde comecei a levar a maior parte das peças... as mais fracas. Hoje tenho ali cerca de 20 estantes, até ao tecto, com revistas e livros", conta Carlos Gonçalves, salientando que os livros estão em segunda fila, porque "sempre gostei de ler livros policiais, pelo que também os coleccionava. Quando a banda desenhada começou a escassear, havia necessidade de manter o vício. Comecei então com os suplementos dos jornais infantis, com as cadernetas de cromos, com as construções de armar e outros suplementos das revistas, com os fascículos antigos, do princípio do século, como o "Capitão Morgan", "Texas Jack" e "Sherlock Holmes", e, finalmente, com a famigerada Literatura de Cordel, que pensava que se resumia a algumas dezenas de obras, sendo, afinal, composta por centenas, muitas com 5, 6 e 7 volumes por obra, cheias de fabulosas gravuras, tão belas como fotografias ou ainda mais".

Foi desta forma que o espaço de Carlos Gonçalves se esgotou e o levou a arrumar as suas obras no sotão. Uma situação que não agrada ao coleccionador, mas que por enquanto vai mantendo. "Este meu interesse em coleccionar tem igualmente uma justificaçã: se não existissem os coleccionadores - que cada vez mais proliferam no nosso país - centenas de alfarrabistas e antiquários, todas essas revistas e livros desapareceriam, pois se quiser ter acesso a qualquer material deste género, não o encontra nas bibliotecas". Apesar de agora, os apreciadores deste género de literatura já poderem contar com a recente Bedeteca, que dá os seus primeiros passos e detém "algumas peças de valor e algumas colecções".

A BD, nas palavras do coleccionador, "é uma forma de cultura, pois o leitor ao debruçar-se sobre qualquer história aos quadradinhos, sabe que os seus autores, para a criarem, fotografaram ou documentaram-se sobre os locals onde se passa a acção ou deslocaram-se ali para fazerem esboços, de forma a darem maior realismo às cenas que desenham. Ao mesmo tempo os elementos que fornecem ou os factos narrados, terão que ser forçosamente verídicos, ou quando se trata de ficção, apresentam-na de uma forma coerente e aceitável. Isto não esquecendo que, no que respeita à vida de figuras célebres, os leitores mais jovens, conseguem ter acesso a essas informações de uma forma simples e de fácil aprendizagem, divertindo-se e ao mesmo tempo, ocupam os seus tempos livres".

Historietas, Comics, Gibis...

As histórias aos quadradinhos, como são conhecidas em Portugal, ou a banda desenhada - como se diz, "numa adaptação errada do francês", nas palavras de Carlos Gonçalves - não são assim designadas noutros países onde têm igual tradição. Em Espanha, por exemplo, chamam-se "Historietas", "Tebeos" ou "Comics". A última designação é também a que se utiliza em Inglaterra e nos Estados Unidos, a par do nome "daily strips" ou "Sunday's Pages" (conforme sejam publicadas diariamente nos jornais em tira ou ao domingo, em página ou prancha). Já em Itália intitulam-se "Fumetti" e no Brasil, além de histórias aos quadrinhos, também são conhecidas por "Gibis" (nome de uma revista de muito sucesso).

Também em Portugal houve uma época em que as revistas de banda desenhada eram conhecidas por "Mosquitos", devido ao êxito da publicação que usava o mesmo nome em 1940 - ou, livros de cóbóis devido à invasão de histórias de cowboys na colecção Mundo de Aventuras em 1960.

Clube Português da Banda Desenhada

Em 1976, um anúncio de procura de revistas de BD conduz Carlos Gonçalves até outro coleccionador. Em conjunto, resolvem criar um clube, "onde todos os coleccionadores pudessem trocar e vender entre si as revistas que quisessem". Nasce assim o Clube Portugues de Banda Desenhada (CPBD), onde Carlos Gonçalves se manteve à frente durante 20 anos, assumindo a função de vice-presidente. Apesar de ter a "senha" número 1 de sócio, a presidência do CPBD não o atraiu. "Nunca quis ser presidente, pois sempre fui adepto de que à frente dos destinos do Clube, se deveria manter um desenhador, para ser nosso interlocutor com as várias entidades que viessem a patrocinar as exposições de banda desenhada que realizássemos".

Carlos Gonçalves, consciente de que não tinha jeito para o desenho, adianta os motivos que o levavam a adquirir cada vez mais revistas: "só me interessava coleccionar para ler, e porque gostava de cada uma daquelas peças cheias de côr, onde grandes artistas de nome, incluindo os nossos, tinham criado com amor e carinho cada uma das vinhetas que correspondia a cada página, a acção, a emoção, a aventura, desenhados e pintados, como se de belos quadros se tratassem, onde não faltava o movimento, a beleza, a côr, a perspectiva e o envolvimento das personagens, onde nós, inadvertidamente, acabávamos por nos envolver também, deliciados e saciados".

Para mais, a actividade profissional de Carlos Gonçalves era "esgotante" e o tempo escasso para tratar do destino do Clube, embora sempre tivesse apoiado o CPBD, "mesmo financeiramente".

E a partir daqui estavam criadas as condições para que o seu património de banda desenhada viesse a sofrer um novo impulso. Eram novos contactos, novos coleccionadores e novas revistas trocadas, vendidas e compradas entre todos.

Através do CPBD - e com a ajuda de outros sócios - Carlos Gonçalves realiza algumas exposições, entre elas uma na Madeira e outra na Itália. Tambem a FIL, o Forum Picoas, Gulbenkian, antiga FAOJ, o Institute da Juventude e várias escolas do país foram já palco de grandes exposições fotográficas de revistas de banda desenhada.


Em paralelo, o Clube publica algumas brochuras sobre a 9" arte e Carlos Gonçalves acaba mesmo por ocupar-se de um boletim do CPBD que resultou em 90 números em formato A4 de 20 a 30 páginas cada, dos quais cerca de 70 foram escritos, composto e até impressos pelo coleccionador. Nesses boletins foram apresentados vários desenhadores jovens e foram escritas centenas de artigos sobre banda desenhada portuguesa e estrangeira.

'No início eu não percebia nada de banda desenhada e nem sequer conhecia os nossos artistas", afirma Carlos Gonçalves ao Correio da Linha, adiantando que "com a passagem dos anos" foi conhecendo alguns desses nomes da BD, incluindo artistas que partiram para o estrangeiro em busca de melhores condições de trabalho, como Eduardo Teixeira Coelho, Victor Péon, Carlos Roque e Jayme Cortez. Foi em Florença que Carlos Gonçalves conheceu Eduardo Teixeira Coelho. Victor Péon e Carlos Roque foram-lhe apresentados já no seu regresso a Portugal e Jayme Cortez, encontrou-o em São Paulo, onde vivia. "Mas todos os outros passaram a ser conhecidos e entrevistados por mim, para as páginas do Correio da Manhã", explica relativamente ao jornal diário onde colaborou de 1981 a 1997.

Para escrever artigos para o boletim, Carlos Conçalves vê-se obrigado a estudar e a documentar-se sobre a 9ª arte, primeiro a portuguesa e depois a estrangeira, com maior incidência sobre a norte-americana.

A expressão 9ª arte, utilizada para classificar a banda desenhada, desagrada os amantes desta literatura. Carlos Gonçalves explica porquê. "Cada arte, tem sido numerada, ao mesmo tempo que tem surgido novas artes... a BD é considerada uma arte menor. O cinema é a 7ª arte e a televisão a 8ª. Mas o primeiro filme dos irmãos Lumière data de 1894, "A Saída da Fábrica", no entanto, em Portugal já existiam histórias aos quadradinhos desde 1872, criada pelo nosso grande Rafael Bordallo Pinheiro". Mas sendo ou não a 9ª arte, a BD obriga o coleccionador a "comprar livros, enciclopédias, revistas (às centenas) sobre estudos da banda desenhada e a documentar-me. É outra biblioteca..."

Também as duas páginas semanais que tinha a seu cargo no "Correio da Manhã" o obrigavam a especializar-se. Admite que os primeiros artigos "não são muito bons", mas com o tempo sabe que melhorou. Na verdade, falamos de uma época em que poucos eram os que escreviam sobre esta matéria. Hoje "toda a gente escreve e a critica", alega o coleccionador.

Enquanto as suas colecções vão aumentando progressivamente a nível de revistas e albuns de várias nações, em paralelo, publica artigos semanais no "Diário Popular". Primeiro em coluna, depois em meia-página e posteriormente em página inteira. O sucesso leva-o a escrever 3/4 páginas semanais no suplemento "Pimba", durante cerca de 3 anos, até à extinção do vespertine.

Posteriormente, dedica-se à revista "História", onde apresentou a "História da Banda Desenhada Portuguesa", a primeira a ser publicada em Portugal, em 10 longos artigos. Depois seguiu-se a "Historia da Mulher na Banda Desenhada". Um tema que ficou pelos cinco artigos, devido à mudança de direcção da revista.

Também o "Jornal da BD" contou, durante um ano, com um suplemento da autoria de Carlos Conçalves, dirigido aos mais jovens. Mas nenhuma destas actividades cessa a sua "maior paixão", que continua a ser o coleccionismo.

Actualmente quase que deixou todas as actividades paralelas. A falta de tempo disponível não o impede, porém, de continuar a estudar e a informar outros coleccionadores de novos elementos que entretanto vai recolhendo, através da publicação de Fanzines. "São informações úteis, que de outro modo se perderiam e num país, onde tão pouco se conhece sobre esta arte, não seria justo conservá-las só para mim".

O factor sorte

Ao longo do seu percurso de coleccionador, muitas são as histórias que Carlos Gonçalves tem para contar. A maioria desses episódios curiosos prende-se com o factor sorte. "O meu "Almanaque de O Mosquito" de 1945, foi comprado por 2$50, numa banca de jornais, local onde se encontrava perdido", recorda Carlos Gonçalves. "Hoje vale mais de 5.000$00 (€ 25,00)". Quando trabalhava em Lisboa, o coleccionador aproveitava a hora de almoço para visitar alfarrabistas e vendedores de revistas infantis que "tinham sempre qualquer coisa reservada para mim. Em finais dos anos 70 fui encontrar num deles, um grande embrulho de revistas, atadas com cordéis. Tinham sido vendidas por um retornado das ex-colónias, provavelmente por dificuldades económicas. Quando perguntei o preço, eram a 1$00 cada. Comprei todas! Era a colecção completa de "O Diabrete" (887 numeros) em bom estado e semfalta da folha dos romances ou da maior parte das construcoes de armar. Hoje vale cerca de 500 contos! (€ 2500,00)".

E os episódios caricatos não ficam por aqui. "O mais interessante é ter um dia encontrado, numa tabacaria do meu bairro, a forrar o chão recentemente lavado e ainda húmido, uma série de pequenas revistas. Tratavam-se de exemplares do "Tic-Tac", uma revista rarissima que eu nunca tinha visto. Perguntei à dona da tabacaria onde tinha conseguido aquelas revistas. Ela respondeu que as tinha lá, num canto da loja, onde se encontravam há muito esquecidas e que às vezes as usava para aquele fim. Escusado será dizer que logo as tentei comprar, o que consegui, tambem a 1$00 cada, tendo como oferta todas as que se encontravam no chão e que rapidamente apanhei".

Hoje a colecção de Carlos Gonçalves ronda as 50.000 revistas, incluindo os suplementos infantis de jornais e revistas propriamente ditas, além de albuns. A par, possui ainda cerca de 2.000 suplementos e construções de armar, além de muitas raridades e peças difíceis, sem contar com os cerca de 3.000 livros.


A sua vida feita de colecções de histórias aos quadradinhos, permite-Ihe aconselhar os mais jovens a coleccionarem o que puderem de revistas de BD, mesmo sendo "Mickey's", "Tios Patinhas" ou "Patos Donald". Um género que, não obstante, Carlos Gonçalves não colecciona porque gosta de saber quem são os autores das histórias e as personagens de Walt Disney são todas criadas em estúdios por grupos de autores desconhecidos. Não deixa contudo de elogiar os desenhadores e até os criadores das várias personagens originais que Walt Disney mandou criar, "com a sua arguta visão de homem grande com alma de criança". Sabe-o conhecedor dos gostos dos mais jovens. Admite que delicia e diverte largos milhões de crianças e adultos, por isso não desaconselha estas leituras de BD.

E, em jeito de conclusão, o coleccionador não consegue reprimir um aviso: "tenham cuidado com os "bichinhos" ou "peixinhos" de prata que devoram os melhores papéis e as mais deliciosas cores garridas. Não esquecer igualmente o caruncho. A melhor solução é não encadernar nada e proteger com plásticos todas as revistas. Esses plásticos são os que se usam na compra da fruta ou verduras, porosos e fininhos, que não deixam entrar o pó, mas deixam entrar o ar, sempre importante, para evitar o envelhecimento do papel".

Artigo publicado no jornal O Correio da Linha